Gênero, liderança e inteligência artificial
Existem múltiplos desafios no setor de saúde, um dos quais ganhou novo impulso nos últimos anos: a questão de gênero. Infelizmente, a igualdade de gênero em todos os seus aspectos é uma dívida pendente para os países democráticos e seculares, e vai muito além do setor da saúde. No entanto, em saúde tem um duplo componente particular, a desigualdade de gênero leva a que as mulheres tenham um tratamento diferencial no sistema e, portanto, piores outcomes e mortalidade; e por outro lado, as mulheres que trabalham no setor de saúde, muitas vezes não têm as mesmas oportunidades que seus pares masculinos.
Hoje, tivemos a oportunidade de entrevistar a Dra. Claudia Cejas, chefe do Departamento de imagens da FLENI e pioneira no uso da Inteligência Artificial (IA) no país.
Na Argentina e no mundo em geral, mais de 50% dos médicos são mulheres, mas menos de 15% ocupam cargos superiores, um fenômeno conhecido como o “teto de vidro”. Por que você acha que isso acontece?
Penso que se deve a razões culturais. Muitas das mulheres de minha geração foram criadas por mães não trabalhadoras e tivemos que nos reinventar, ou seja, aprender a acreditar que se podia ter uma família e, ao mesmo tempo, ser uma boa profissional. Somar-lhe a esse esforço, o ocupar postos de poder, tal como uma chefia, era um duplo sacrifício para a mulher e acho, que nem todas estavam dispostas a fazê-lo, ou não se sentiam confiantes para fazê-lo. No entanto, apesar da sensação de termos aberto o caminho para novas gerações de mulheres, vemos que o “teto de vidro”, como você diz, persiste ainda hoje. É que as mudanças culturais levam muitos anos (às vezes séculos, como demonstra a história da humanidade), por isso acredito que esse “teto” se ira “afastando” ao longo do tempo, enquanto a mulher se permita competir com o homem como pares. Com efeito, penso que o homem discrimina a mulher, mas a mulher também a discrimina ou, auto-discrimina; por vezes, a mulher não se dá o lugar que merece, porque precisa de uma reconfirmação da sua posição
O preconceito de gênero e várias formas de discriminação contra as mulheres atravessam todas as esferas da vida. O acesso equitativo das mulheres à ciência e à tecnologia da informação não é exceção. Você concorda com essa afirmação? Qual é a sua opinião sobre isso?
Absolutamente de acordo. Acho que as “ciências duras” sempre foram reservadas ou, escolhidas? pelos homens. Historicamente, foi reservado às mulheres um lugar nas chamadas “ciências suaves” e aos homens para as “ciências duras” e ainda é raro encontrar mulheres nessas áreas. Se bem que, felizmente, a tendência esteja a aumentar, é ainda uma minoria as mulheres que se dedicam à informática.
Como foram seus passos até a sede de Diagnóstico por imagens de FLENI?
Comecei a trabalhar em Fleni com um substituto de férias, recém-formada da minha residência e fellowship. No final da substituição, propus desenvolver as técnicas que aprendi no meu fellowship (que ainda não foram realizadas em Fleni). Percebi que o chefe não confiava no meu projeto, mas, ele aceitou. Lembro-me de voltar para casa de carro cantando da alegria. Eu trabalhei muito, para provar que eram úteis, então eu estava desenvolvendo e otimizando outras técnicas. Embora meus diagnósticos fossem questionados, eu adorava fazê-lo, acreditava neles, e trabalhei muito até que ao longo dos anos eles se espalhassem e se tornassem técnicas usuais de diagnóstico e não questionáveis. Então procurei outros desafios e tudo começou novamente. Há 25 anos que estou em Fleni, e ainda me questionam as técnicas que continuo desenvolvendo… mas já não me importa, sei que é uma questão de tempo. Há 5 anos, o diretor médico me propôs que lhe apresentasse um projeto para dirigir o Departamento de Imagens. Tive vontade de cantar outra vez.
Existem algumas empresas que, para evitar preconceitos de seleção por gênero, raça ou condição social, usam algoritmos de IA para filtragem de candidatos. Como você veria a implementação desses tipos de algoritmos em Saúde?
Eu amo a idéia, porque nas seleções de candidatos há sempre preconceitos. Embora se trate de ser equitativo, o cultural está internalizado na mente humana e desempenha um papel muito importante na hora da eleição podendo gerar seleções injustas. Acho que usando algoritmos de IA, a seleção de candidatos seria muito mais equitativa.
Vários estudos afirmam que, se os modelos de IA desenvolvidos são treinados com dados que não eliminam o preconceito de gênero que a sociedade tem gerado, repetiremos os padrões de preconceito de gênero. Portanto, para garantir essa “responsabilidade algorítmica”, as mulheres devem se envolver mais ativamente nesses tipos de projetos tecnológicos. Mas, de acordo com sua experiência, qual é hoje o envolvimento da mulher neste campo?
Acho que hoje, há mais homens do que mulheres envolvidos em projetos de IA. Acho que a IA ainda gera medo independentemente do gênero. Como tudo novo, envolve sair da zona de conforto. As mulheres deveriam ter um papel maior nesta área.
Vários estudos mostraram que as mulheres que consultam a emergência com infarto do miocárdio têm maior chance de morrer, especialmente se forem tratadas por médicos homens. Você acha que existem preconceitos no atendimento de pacientes mulheres em radiologia? Quais? Você considera que a IA poderia ajudar a reverter essa tendência?
O preconceito de gênero não escapa à atenção médica. A subjetividade ao abordar um diagnóstico tem um papel não menor. Com certeza, eu estimo que através de algoritmos de IA essa tendência pode ser revertida.
Você acha que há espaço para ensinar liderança e igualdade de gênero em programas de formação acadêmica?
Infelizmente, na maior parte dos programas de formação académica, não se ensina liderança e, muito menos, igualdade de género. Considero que os programas de formação académica estão muito centrados na parte técnica de cada curso. Seria de grande interesse a abordagem das bases de liderança (líder não é nascido, é feito), bem como trabalhar sobre a igualdade de gênero. Para isso, os professores e diretores de curso devem ser treinados em liderança e acreditar na igualdade de gênero.
O que você diria hoje aos especialistas por imagens que estão treinando na residência ou começando sua vida profissional pós-residência?
Eu diria a eles para confiar em seu instinto. Que não percam as oportunidades, pois às vezes não se repetem. Que pensem no que vão dizer antes de falarem. Que não é necessário gritar ou adotar uma atitude masculina para demonstrar força. Que não esperem pela aprovação do outro, às vezes nunca chega. Que não baixem os braços, nem parem de trabalhar, trabalhar e trabalhar. Que as mulheres são muito diferentes dos homens, mas também somos muito diferentes entre nós, assim como os homens são entre eles, mas em suma todos nós somos Sapiens estamos, portanto, naturalmente dotados de desenvolver os mesmos papéis.